Do Huffpost Brasil
Por Andréa Martinelli e Marcella Fernandes
(Foto: Nurphoto/ Getty Images) |
Em 2020, a expectativa de aumentar a representatividade feminina nas câmaras municipais e prefeituras pode ser frustrada devido à pandemia do novo coronavírus. Mas existem iniciativas que, mesmo diante da crise sanitária, continuam com o trabalho de impulsionar candidaturas femininas e reduzir a desigualdade em espaços de poder.
″É muito importante que a gente coloque oxigênio em um momento tão urgente e tão alarmante como o que estamos vivendo agora, que é a longo prazo. Parece que a gente se acostuma com o alarde, com o pânico provocado. O que a gente não pode é diminuir a potência do voto”, afirma Maísa Diniz, cofundadora da iniciativa Vote Nelas.
Nas últimas eleições municipais, em 2016, 25% dos municípios brasileiros não elegeram sequer uma mulher vereadora. Menos de 14% dos vereadores eleitos naquele ano eram mulheres, segundo o estudo Perfil das Prefeitas no Brasil (2017-2020), do Instituto Alziras, com dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). O que mostra uma grande lacuna, já que as mulheres são 52% do eleitorado no Brasil.
Para tentar mudar esse cenário, estas iniciativas têm se intensificado por todo país não só para estimular candidaturas, mas também auxiliar partidos no treinamento de candidatas e promover o voto em mulheres. Em alguns casos, a ideia é dar, principalmente, visibilidade às candidaturas femininas e trazer a importância das questões de gênero, que ficaram evidentes com a pandemia, para o centro da discussão.
Neste cenário, as eleições para os cargos de prefeito e vereador foram adiadas para 15 e 29 de novembro, respectivamente, primeiro e segundo turnos. Os partidos e coligações têm até 26 de setembro para registrar os candidatos e até 27 de outubro para apresentar à Justiça Eleitoral um relatório discriminando as transferências do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral e a estimativa dos recursos recebidos.
Uma das mudanças das eleições deste ano é que os recursos públicos destinados a candidaturas femininas terão de ser proporcionais ao número de mulheres na disputa, conforme estabelecido em resoluções do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). A regra vale tanto para o Fundo Eleitoral quanto para o Fundo Partidário.
Desde 2018, é obrigatório que ao menos 30% do Fundo Eleitoral vá para mulheres na disputa eleitoral, mesmo patamar mínimo de candidaturas. Agora, o valor precisará ser proporcional. Se houver 40% de candidatas mulheres, por exemplo, 40% do dinheiro irá para elas.
Especialistas ouvidas pelo HuffPost Brasil afirmam que as tarefas domésticas, o cuidado com filhos e idosos, além de perda de renda e o temor da contaminação pela covid-19, podem inviabilizar o sucesso das mulheres nas urnas. Barreiras históricas de financiamento e controle masculino de decisões nas cúpulas dos partidos também continuam presentes.
“Quando a gente escolhe alguém para fiscalizar o prefeito, por exemplo, será que essa pessoa não tinha que ter as mesmas habilidades de quem cuida de um filho?”, questiona Diniz, que chama a atenção para o quanto as candidaturas femininas, mesmo diante de tamanha vulnerabilidade provocada pela crise sanitária, podem criar oportunidade.
“O que mais influenciou neste momento, de certa forma, foi a pauta do cuidado e da sobrecarga das mulheres e, em especial, mostrar que cuidar é trabalho. O trabalho do cuidado, seja em casa ou na área de saúde, é majoritariamente feito por elas. Se quem faz esse tipo de trabalho tão essencial são mulheres, por que, então, não votar nelas?”.
A tentativa de movimentação nos municípios mesmo à distância
Mesmo com baixa representação, é nos municípios que são feitas as políticas públicas que impactam de forma concreta a vida cotidiana das pessoas e da qual muitas mulheres desejam se envolver. Pensando neste contexto, para 2020, o Vote Nelas criou o projeto “Embaixadora Vote Nelas”, que é uma rede de mobilização para que, juntas, mulheres possam eleger mais mulheres.
O projeto, que é suprapartidário, foi idealizado a partir da pesquisa Jornada da Candidata, realizada pelo coletivo entre junho de 2019 e janeiro de 2020. Candidatas de 16 estados, 14 partidos, 10 eleitas e 24 não eleitas participaram. Ao total, foram ouvidas 34 mulheres, de todos os espectros ideológicos e de todas as regiões que disputaram as eleições em 2016 ou 2018 a vereadoras e deputadas tanto estaduais, quanto federais.
A pesquisa revelou desafios e nuances que dificultam desde a entrada até a permanência de mulheres no cenário político brasileiro. Entre eles, a percepção de que os homens ainda ditam as regras do jogo, de maneira geral, e que a situação de desigualdade no Brasil é motivadora de candidaturas femininas.
“O que existe de potente para as eleitoras nessas etapas [do Embaixadoras] é perguntar para a candidata em seu município o que a motiva, se a família apoia, qual a rede de apoio, quem são as pessoas que estão com ela na candidatura. Tudo isso é democrático e é um exercício de sororidade”, afirma Diniz.
Todo o projeto, devido à pandemia, está acontecendo remoto e, por isso, trouxe desafios. “O uso da internet como meio de trabalho foi imposta goela abaixo”, pontua a co-fundadora. “A gente tem esse desafio de conseguir chegar tanto em municípios mais remotos quanto em regiões periféricas. Porque as mulheres que não tem internet são efetivamente excluídas.”
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - Tecnologia da Informação e Comunicação (Pnad Contínua TIC) 2018, do IBGE, 25% dos brasileiros não têm acesso à internet. Isso representa cerca de 46 milhões de pessoas.
Para evitar este problema e fazer com que o conteúdo do projeto chegasse a mais pessoas as embaixadoras selecionadas foram orientadas a chegar até o maior número de pessoas possível, buscando candidaturas diversas não só por serem de indígenas e mulheres negras, mas por serem de partidos diferentes.
“Por trabalharmos com as cinco regiões do País, a gente já tinha a ideia da distância. Mas a imposição da internet como o único meio de comunicação devido à pandemia fez com que a gente mudasse algumas estratégias. Agora estamos criando ‘pequenas pílulas’ de informação nas nossas redes sociais, po exemplo, fazendo lives, e reorganizando o planejamento.”
O enfrentamento das barreiras entre ser mulher e candidata
Assim como o Vote Nelas, para fortalecer candidaturas femininas, a ONG Elas no Poder lançou a plataforma Im.pulsa em 2020. Apelidada de ‘Netflix para pré-candidatas’, o site é dividido em 4 frentes: disponibiliza cartilha, vídeo-aulas, exemplos de estratégias bem sucedidas e documentos pré-moldados, como planilhas de orçamento de campanha.
Desde as eleições de 2018, a ONG ofereceu cursos presenciais para a capacitação de mulheres que desejam trabalhar em campanhas eleitorais femininas. Mais de 500 pessoas participaram dos cursos de formação em diversas cidades. Com o isolamento social e o lançamento da nova ferramenta online, só em junho, cerca de 2 mil pessoas acessaram o conteúdo.
“Desde que a gente começou a divulgar [a plataforma], não para de chegar email de mulheres dizendo ‘sou representante da secretaria de mulheres do partido no interior do Ceará. Como faço para trazer o curso para cá?’. A gente está bem surpresa com o quanto elas estão de olho nesses recursos nesse momento”, diz Letícia Medeiros, cientista política e uma das criadoras da ONG.
A iniciativa visa enfrentar barreiras para participação feminina na política, como baixa confiança das candidatas, baixo incentivo de amigos e parentes, recrutamento dos partidos, baixo investimento nas campanhas, conhecimento sobre política, sobrecarga e dupla jornada e violência de gênero na política.
“Pessoas de diferentes partidos jogam na mesa e falam ‘lá no meu partido estou tendo essa dificuldade, a gente tem esse enfrentamento’ e as mulheres estão se apoiando nesse sentido. A gente orienta muito que elas negociem recurso coletivamente”, revela Letícia. ”Se elas agirem coletivamente, elas conseguem se fortalecer politicamente dentro do partido, garantir que haja um repasse mínimo para todas campanhas femininas e até se qualificar e entrar nessa disputa política.”
A ONG conta com mais de 30 voluntários de vários estados nas áreas de comunicação, design, ciência política e direito para manter o projeto funcionando. “A gente dá curso, capacitação, existe a cota dos 30%, os 5% destinados à formação, mas a porta de entrada dos sistema político é o partido que, muitas vezes, é uma instituição anti-democrática”, pontua Letícia, ao citar que as mulheres ainda precisam ‘chutar a porta’ para entrar na política.
Em 2016, o Brasil elegeu 649 prefeitas para 5.568 municípios e 7.808 vereadoras, o equivalente a 11,6% das prefeituras e 13,6% do Legislativo municipal, respectivamente. Desde então, passou a ser obrigatório um financiamento mínimo para campanhas eleitorais de mulheres, e avançou o cerco a candidaturas de mulheres como laranjas.
“Este é um momento para a gente mudar uma série de paradigmas da própria forma de fazer campanha, da própria forma de se comunicar e de comunicar candidaturas. É um ano em que realmente você tem uma janela de oportunidade de fazer diferente, ousar e sair da caixinha do que já estava sendo feito”, diz Letícia. “A gente tem falado muito isso ‘olha mulheres, chutem a porta, participem’ e vamos ficar de olho porque os recursos vão continuar vindo em boa parte dos fundos públicos. Até o brasileiro criar uma cultura de realmente doar para campanha vai levar um tempo. ”
Possibilidade de agenda do ‘cuidado’ ser fortalecida
“Essa situação de maior precariedade social e vulnerabilidade que a pandemia traz também abre espaço para o fortalecimento de uma agenda de compromisso do Estado com as necessidades das pessoas”, afirma a professora Flávia Biroli, presidente da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP), que participa do projeto “Mais Mulheres nas Eleições Municipais - Desafios e Estratégias em Tempos de Pandemia para Fortalecer Candidaturas de Mulheres no Próximo Ciclo Eleitoral”.
Criado pelo Instituto Alziras e pela Fundaçāo Konrad Adenauer, em parceria com o Fórum Nacional de Instâncias de Mulheres de Partidos Políticos e a ONU Mulheres, o projeto traz um curso online para pré-candidatas a prefeitas e vereadoras, divididos em módulos semanais, com tutorias, atividades práticas e fóruns de discussão.
Todo conteúdo é produzido por especialistas como a professora Flávia Biroli, presidente da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP), e a jornalista Olga Curado, desenvolvedora de comunicação e preparadora de candidatos.
Para Biroli, não é da natureza, mas da história das relações de gênero, que as mulheres tem um olhar mais afinado para as vulnerabilidades e a complexidade entre a vida doméstica e a vida pública e, por isso, em uma campanha com estes temas no centro, pode haver certa vantagem.
“As pessoas estão se sentindo mais vulneráveis, estão vendo a importância de ter um sistema de saúde pública efetivo, de haver responsabilidade estatal, que está faltando nessa pandemia. Pode ser que essas agendas que têm sido historicamente mais ligadas à atuação das mulheres ganhe mais força nessa eleição”, diz. “Que elas possam trazer a sua experiência com a vulnerabilidade, com as relações no cotidiano, de cuidado, sabe, para uma eleição na qual esses temas foram mais politizados com a pandemia. Essa pode ser uma vantagem em relação aos homens”
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